Internacional no andebol, craque no badminton, campeã no ténis e professora furacão

Ao contrário do sol, o talento, quando nasce, não é para todos. Há quem trabalhe uma vida toda à procura de uma qualificação, treine intensamente atrás de uma taça sem nunca o conseguir. E depois há outros, como Maria do Carmo Santos, que tem juntado esse mesmo talento a muito trabalho, paixão e idoneidade para, ao longo de quatro décadas, somar títulos atrás de títulos em, pasme-se, três modalidades diferentes.

É verdade. Ainda assim, a sua maior vitória está na profissão que abraçou, que sempre quis e que continua a exercer com distinção e merecedora de uma aclamação, como ficou provado no passado sábado, na cerimónia do Dia do Professor de Educação Física, que decorreu na Igreja de Nossa Senhora da Pena, em Leiria. Mas já lá vamos.

Filha de uma família humilde de Cumeira do Paço, na Barreira, Maria do Carmo, mal entrou na escola primária, percebeu o que queria ser quando fosse grande.

Não queria ir servir para a cidade, como parecia ser inevitável para uma menina da sua condição. Nem pensar. Queria e fez tudo para contrariar a ordem natural das coisas, porque depois do que tinha visto, só pensava ser professora. “Pelo conhecimento”, sim, mas sobretudo pelas “modificações que se podem implementar na vida dos alunos”.

E ela sabia bem do que falava. Entrou no ciclo já com 14 anos, porque entrou mais tarde na escola, e agarrou com unhas e dentes as oportunidades que lhe estavam a ser dadas. Sabia que só tinha uma hipótese. Que qualquer chumbo a colocaria a trabalhar no campo ou em casa de uma senhora. Por isso, foi sempre “boa aluna”.

Os professores sempre a motivaram, mas estava a nascer uma nova paixão. As aulas de Educação Física eram uma alegria. “Sempre fui muito maria-rapaz. Tinha muito jeitinho, era muito coordenada.”

Maria do Carmo, com a camisola 3, jogou 13 anos no andebol do Benfica e foi oito vezes campeã nacional

Continuava a querer ser professora, mas tinha de ser de Educação Física. “O desporto dá-nos muita coisa, como a união entre pessoas, as amizades, o companheirismo, o saber ganhar e o saber perder, o respeito pelas regras, a integração de pessoas diferentes, a educação para a vida e até a higiene.”

Após o 25 de abril, quando passou a haver turmas mistas, foi “melhor ainda”. Maria do Carmo Santos competia com os rapazes e “ganhava-lhes”. “Sob o ponto de vista motor, era a melhor da turma”, diz, sem quaisquer dúvidas.

Tinha 16 anos quando ingressou na primeira atividade federada, o badminton do Ateneu Desportivo de Leiria, encaminhada pelo professor Mont’Alverne que lhe gabava o talento e lhe emprestava a raquete.

Aos 18 anos, porque “se faziam mais amizades nas modalidades coletivas”, começou a jogar andebol no Paulo VI, um passo que viria a ser decisivo para o seu futuro.

Quando conclui o ensino secundário, começa a trabalhar de forma a juntar dinheiro para poder ingressar no então ISEF, hoje FMH, em Lisboa. Fá-lo apenas aos 23 anos e nos três primeiros anos jogava e estudava em Lisboa e continuava a trabalhar em Leiria. “E não havia auto-estrada…”

Em Lisboa, começou por jogar no Campo de Ourique e depois foi convidada para ingressar Benfica. Passou lá 13 anos de vida enquanto jogadora de andebol, ganhou oito títulos nacionais e inúmeras Taças de Portugal. Apesar de não ser canhota, fazia a cabeça em água às guarda-redes com os seus remates da ponta direita. Era única, tanto que jogou até aos 43 anos e teve a suprema honra de envergar a camisola das quinas.

Nos últimos anos, já colocada em Leiria, ainda viajava diariamente para Lisboa para treinar pelas encarnadas, mas acabaria por encerrar a carreira na Juventude do Lis.

No passado sábado, Maria do Carmo Santos foi uma das distinguidas no âmbito do Dia do Professor de Educação Física

A necessidade de competir não a largou e, pouco tempo depois, meteu-se no badminton. E se “no primeiro ano andava a correr atrás dos volantes”, a vontade de superação não a deixou ficar-se. Com talento natural para tudo o que é desporto, logo no segundo ano foi campeã nacional de categoria D e, no ano seguinte, de categoria C, tanto individual, como em pares senhoras e mistos.

Entretanto, é operada à mão direita. Pensava que a carreira desportiva estava fechada, mas como tinha alunos a estagiar no Centro Internacional de Ténis de Leiria, acabou por, inadvertidamente, encontrar um novo desafio. Ainda por cima, tinha como único ídolo, Roger Federer, esse mesmo, um tenista suíço que prima pela “idoneidade, talento e elegância”.

Aos 53 anos, começa então a treinar com Miguel Sousa, “seriamente”, “praticamente todos os dias.” Quando o treinador a sentiu preparada, começou a competir. Foi uma limpeza. Chegou a vencer dois torneios que disputou em simultâneo. “Jogava na Batalha primeiro e depois ia de moto para Leiria jogar.”

E assim, num par de anos, começou a ganhar. E, mais improvável ainda, foi campeã nacional individual em +55 anos e muitas outras vezes vice-campeã. Está definitivamente entre as melhores jogadoras nacionais, a ponto de já ter ido a três Mundiais de veteranos. É, de resto, a capitã da seleção de +60 anos e já só pensa em estar apta para viajar para Palma de Maiorca, em Outubro do próximo ano, e representar o país mais uma vez.

O percurso é avassalador. Campeã e três modalidades diferentes. Realça, contudo, que apesar de toda esta atividade desportiva, do “orgulho enorme de representar Portugal em andebol e em ténis”, nunca abdicou dos princípios da profissão que escolheu.

Começou a jogar ténis depois de fazer 50 anos e já foi a três Mundiais de veteranos

“Deixei a marca nas escolas por onde passei e sobretudo naquelas crianças que tinham mais dificuldades, como eu tive.”

Lançou o voleibol do Cacém para não deixar tempos aos miúdos para as coisas más da vida, pôs a olímpica Vânia Silva a praticar atletismo na escola da Maceira, terra onde deu a conhecer o andebol a Telma Amado, que viria a ser internacional portuguesa. E tantos, tantos mais…

“Ser professor é uma profissão muito nobre, porque podemos ter uma boa influência no futuro de muita gente. E de Educação Física sobretudo, porque só há uma mente sã se houver um corpo são.”

Na Escola Secundária Afonso Lopes Vieira, onde leciona há 18 anos, nunca se permitiu acalmar. Esteve sempre envolvida em projetos com um forte cariz social.

Lançou o “Futebol de Rua” na Quinta do Alçada, que envolvia, de forma lúdica, os cidadãos das várias nacionalidades presentes naquele bairro. Avançou para o “Se tu danças eu danço”, com música e dança no intervalo maior das quartas-feiras. Continuou com o “Snow Trip”, que colocou os alunos a fazer ski numa estância em Espanha. Assim, com tanta genica, só podia ser conhecida como a “professora furacão”.

Por tudo isto e por muito mais, no passado sábado, Maria do Carmo Santos, foi homenageada pela APEF de Leiria no decorrer das cerimónias do Dia do Professor de Educação Física. “Foi uma grande surpresa, porque há tanta gente que merece! Claro, fiquei muito emocionada. Larguei-me logo a chorar.”

Comentários

  • Gracinda Guerra
    1 Outubro, 2022 @ at 12:44

    Carmo! minha Grande Amiga! Como eu admiro a tua garra! Mulher guerreira! Sempre foste e serás o idolo de muitos miúdos e graúdos! Continua assim a ser GRANDE!!!! 😘😘❤

  • Sidónio Pereira
    1 Outubro, 2022 @ at 13:59

    Ainda recordo a voz da professora Maria do Carmo a incitar um melhor desempenho de cada aluno.
    Grato por ter sido seu aluno.

  • Cila fernandes
    1 Outubro, 2022 @ at 20:04

    Carmo
    Sinto orgulho de ser tua amiga desde o nosso primeiro ano do ciclo até hoje
    continua assim és uma inspiração

  • Maria da Luz Ferreira
    2 Outubro, 2022 @ at 18:48

    Muitos parabéns Maria, e muito sucesso ,como vem sendo em tudo o que te pões a fazer, a vida é uma viagem sem contemplação, idoneidade e honestidade. Força, Beijinho

  • Raquel Silva
    3 Outubro, 2022 @ at 22:11

    Simplesmente uma mulher incrível e que admiro muito. É com grande orgulho que digo que foi minha professora na escola da Maceira. Agora como mãe, relembro a educação e amizade transmitida por ela, para os meus filhos, sendo a professora Maria do Carmo aquela pessoa inesquecível e inigualável. Muitos parabéns, beijinhos.

  • Edna Silva
    4 Outubro, 2022 @ at 06:44

    Professora Carmo. Orgulho da melhor professora de educação física que tive na escola da Maceira. Professora que me levou ao andebol da juve em Leiria. Muitos parabéns.

  • António Coelho
    5 Outubro, 2022 @ at 12:08

    Comprimentos e felicidades para a Stora Maria Do Carmo, é com grande satisfação e orgulho que me recordo de ter sido aluno desta pequena mas grande mulher na escola da Maceira, ela era muito assertiva quando nos dava um raspanete mas muito amiga quando precisávamos de alguma coisa, sempre que se deslocava do gabinete de professores para o ginodesportivo tinha sempre uma brincadeira para com os alunos, foi também minha treinadora de andebol no desporto escolar, muitos parabéns por tudo o que alcançou na sua vida 🌹🌹🌹🌹🌹

  • Margarida Neves
    6 Julho, 2023 @ at 17:56

    Olá Carmo hoje fiquei surpreendida com tanta glória que tiveste na tua vida profissional como desportiva
    Mesmo sem saber deste comentário para mim és um exemplo não só na tua simplicidade e resiliência. Não pude de deixar aqui o meu depoimento .Parabéns como a mulher que és. Bjinhos colega tenista Margarida Neves.

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